Tragédia da Vida Moderna

Foto: Leda Bueno


Ontem um dos caras que me estuprou na adolescência me mandou solicitação de amizade no Facebook.

Foi a primeira vez - em anos -, em que o vi e não senti o estômago doer. Não olhei muito, mantive meus olhos no nome e na foto até me dar conta de quem era e então deletar a solicitação. Deixei pra lá. As memórias sequer ficaram em minha mente.
Fui para o banho agora de manhã, e como meu marido diz, o banheiro é o meu escritório, é onde meus pensamentos e sentimentos afloram. Me lembrei da solicitação de amizade. Também me lembrei dele dizendo que não me machucariam, enquanto eu pedia para ele parar e pedir para o amigo parar, pois, já estavam me machucando.


Eu não quero chorar, não me sinto triste, mas tenho essa pedra no estômago. Eu respiro fundo e sinto o peso dela. Meu corpo não para de tremer.
Às vezes acho que já chorei e sofri tanto que não restou mais nenhum desses sentimentos pra me machucar. Mas quando coisas como essas acontecem, vejo o quanto isso ainda me afeta.

Eu sigo em frente, sorrio pra todo mundo, gargalho da e pra vida, reconstruo sentimentos e a mim mesma. Faço novas memórias e amizades, mas acho que será impossível algum dia olhar pra ele, ou me lembrar sem sentir esse peso no estômago, ou sentir o colchão daquela cama embaixo do meu corpo ou o gosto do vinho na minha boca e o desespero e vergonha em minhas células ao acordar no outro dia de manhã.
Eu me lembro da vergonha e de blindar a minha mente fingindo que nada aconteceu, que o ocorrido não era, de fato, um estupro. Já que eu havia crescido e brincado com aquele amigo por tantos anos e muitas vezes nos beijamos. 

Falar sobre isso tornou as coisas reais, de certa forma mais fácil de lidar, mesmo que isso ainda surja em minha mente vez ou outra, ou me apavora todas as vezes em que tenho de ficar sozinha numa sala ou em algum lugar com um homem. Essas lembranças não me atormentam tanto quanto as da infância. Eu continuo vendo meus olhos, como se eu fosse o ar ao meu redor e não aquele corpo de cinco anos de idade embaixo do corpo de um homem mais velho que meu avô, se esfregando e tocando em mim, me perguntando se eu estava gostando. Às vezes meu corpo traicoeiro diz que sim, que eu estava gostando e continuo a gostar, pela forma que ele reage sexualmente a tudo, mesmo que a minha mente grite "não" e eu fique enojada. Sexo se tornou meu conforto, minha válvula de escape para dor, mesmo que isso cause mais dor e a ferida nunca cicatrize, apenas se torna mais profunda.

Queria tirar isso de mim, ter um pouco de paz, dormir uma noite inteira, não chorar escrevendo pra você ou falando sobre isso na terapia. Eu queria poder mudar o que isso fez com meu corpo, com minha mente, com a criança que eu era e a mulher que sou. Assim como eu quero cobrir as três tatuagens que foram feitas pelo cara que tentou abusar de mim aos 24 anos. Eu não as quero mais, mesmo que sejam homenagens para pessoas que eu amo. Eu quero cobri-las e não ter de me lembrar dele a cada vez que olho para elas em vez de me lembrar dos rostos de quem homenageei. Eu só quero tirar tudo de mim e me olhar novamente sem ter essas lembranças.

Às vezes acho que não sei nada sobre mim, mesmo que eu perceba cada mudança fisiológica, que eu conheça cada detalhe do meu corpo, seja atenta ao meu sentir e os caminhos que minha mente tomam, mesmo que eu aceite a minha verdade e saiba que nada vai mudar. Mas eu queria que mudasse, porque essa pedra no estômago machuca e meus ossos não são fortes o suficiente para carregá-la.






Comentários

  1. Você sabe que não está sozinha! Conte comigo pra conversar se isso tirar um pouco do peso dessa pedra!

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  2. Faço minhas as palavras da Anna aí em cima. A gente tá com você, mesmo de longe.

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  3. Relato assustador e muito forte. Estou emocionado.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está em Hiatus de verão de 18 de janeiro à 04 de março, mas comentaremos nos blogs amigos nesse período!

    Jovem Jornalista
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    Até mais, Emerson Garcia

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  4. Você não está sozinha, amiga. Estou aqui para segurar a sua mão.
    Te amo!

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  5. Recebe meu abraço de urso! Te amo e estou aqui pra você sempre! Não esquece!

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