Libertador


Páginas do meu diário. 

Algum momento do primeiro semestre de 2020.


O que as pessoas fazem quando se sentem tristes, ansiosas e vazias? O que você faz quando se sente assim? 

Desde que vim para a casa dos meus pais vivo uma montanha russa de sentimentos. Alguns dias eu estou realmente bem e sorrindo um monte, alguns dias eu me sinto triste e sinto falta de mim mesma. Assim como pessoas podem nos fazer mal, lugares também podem fazer. Antes de vir, me senti mal por dias. Sei que o sofrimento antecipado é um dos tantos sintomas de ansiedade, mas quando o assunto é voltar para esse lugar, minhas emoções ficam intensas demais e não há Yoga, meditação e técnicas de respiração que ajude. Eu tinha medo de não conseguir lidar com as lembranças e os sentimentos que tenho sempre que venho aqui. Ainda tenho medo da violência, mesmo que tenha se passado dezesseis anos desde que morei aqui pela ultima vez. 

Os primeiros dias foram horríveis, não pude dormir por dias, me assustava com minha própria sombra e queria trancar todas as portas e janelas assim que escurecia. Mas, aos poucos, fui aprendendo a lidar. Alguns dias são bons, outros nem tanto. Me permito chorar nos dias que não são bons, depois do choro me sinto mais “leve”. A verdade é que eu continuo a ter medo de tudo que vivi aqui. 


Noite passada eu consegui dormir por 7 horas seguidas, isso não acontecia desde o dia 1 de janeiro. Eu deveria me sentir feliz, eu também não tive pesadelos. Supostamente eu deveria me sentir feliz. Feliz. Mas desde ontem à tarde eu tenho esse sentimento tão familiar misturando a minha mente. Ansiedade é uma merda. 


Eu tenho me cobrado demais. “Não tenha medo. Não tenha medo”, eu digo para mim mesma todos os dias, mas eu continuo trancando as janelas e as portas assim que o sol se põe. Eu tenho que ser mais gentil comigo mesma e aceitar que está tudo bem não estar tudo bem o tempo todo. Eu estou viva e é isso que acontece quando estamos vivos, nós sentimos. Nós experimentamos todos os tipos de emoções várias vezes ao dia. Eu preciso me permitir sentir medo ou tristeza sem acreditar que está errado me sentir desse jeito.


No mês passado a minha fisioterapeuta me convidou para dar uma palestra sobre ansiedade e depressão na igreja que ela frequenta. Eu aceitei o convite e, de certa forma, me senti feliz por ela acreditar que eu poderia fazer aquilo. Ela costuma me ouvir e as vezes temos longas conversas sobre a minha vida. Algumas vezes acho que não sei lidar muito bem com o fato de estar aqui. Mas ela pensa que eu sei. 

Então eu fui lá. 


Havia muitas pessoas me ouvindo falar sobre os meus medos. Eu estava suando e me sentia nervosa. 

Eu já fiz muitas coisas que me exigiram coragem, mas eu nunca me senti tão nervosa como naquela noite. Mas eu fiz. Eu me sentei lá e falei por mais de uma hora sobre os abusos, o estupro, o bullying, meus medos, a insônia, os pesadelos, a depressão, as crises de pânico, a ansiedade e Síndrome da Dor Regional Complexa. Eu optei por manter meus óculos em casa e me dar o direito de não ver nitidamente o rosto das pessoas para que eu não me sentisse intimidada. Quando eu terminei de falar, algumas garotas da época da escola falaram comigo e me abraçaram. Mas eu não tinha ideia do que estava por vir. 


Uma das amigas de minha mãe estava lá, ela é ex nora do homem que abusou de mim na infância. Ela estava chorando e disse “eu posso te abraçar? Eu sinto muito por tudo isso”. Eu a abracei e sorri, conversamos um pouco e eu vim para casa, tomei banho e fui para a cama. Dormi por uma hora e quando eu acordei eu estava doente fisicamente, como se eu estivesse de ressaca e tivesse sido atropelada ao mesmo tempo. A palestra aconteceu no sábado à noite, no domingo eu estava me sentindo doente. Na segunda eu tive a pior crise de ansiedade de toda a minha vida. Na terça eu tive duas crises de ansiedade e chorei como uma criança enquanto conversava com meu namorado durante uma ligação que durou quatro horas. Só então eu entendi o porque de eu me sentir daquele jeito. 


Aquela foi a primeira vez, em muitos anos, que eu estive tão próxima de alguém relacionado aquele homem. Eu não poderia imaginar que a presença dele, independente da forma que fosse, me machucaria tanto. Já que acreditei por tantos anos que tinha virado essa página e me feito mais forte para essas memórias.  


Ela me abraçar e me pedir desculpas pelo que eu vivi partiu meu coração em milhões de pedaços, porque ela provavelmente supôs quem foi a pessoa que tinha feito aquilo comigo. Senti como se ela estivesse se desculpando por se sentir culpada e porque ele nunca se desculparia. Ele morreu alguns anos atrás, idoso e doente. 


Eu nunca o odiei. Eu nunca odiei nenhum dos três homens. Eu tinha mais vergonha e nojo do meu corpo do que tive raiva deles. Eu nunca os odiei, porque eu me sentia culpada. Muitas vezes eu disse para mim mesma Porque você foi a casa dele?, Porque você bebeu vinho naquela festa, mesmo que eles fossem teus amigos de infância?, Você deveria ter ficado em casa


Eu continuo não odiando aqueles homens e parei de me culpar por tudo o que aconteceu, mas eu não consigo olhar para qualquer um deles ou estar perto o suficiente de algo que me faça lembrá-los. 


Ano passado o Facebook me sugeriu como amigo um dos homens que me estuprou. Eu olhei para a foto que mostrava nitidamente o rosto dele e senti meu estômago doer. Ele morava na mesma rua que minha mãe, na mesma rua que morei por alguns anos. Ir ao supermercado significa passar em frente a casa onde eu fui estuprada. 


Estar aqui tem sido desafiador e tem me ensinado muito. Eu tenho me reconectado a muitas partes que deixei adormecer por medo de lidar diretamente. Mas eu não sei se algum dia eu vou querer voltar. 


Meu namorado é um de meus melhores amigos. Eu converso com ele sobre todas essas coisas. Ele me ouve atentamente e não me julga, ele sempre diz que é importante eu dizer tudo que sinto e conversar sobre o que me machuca. Ele é paciente com todos os meus traumas.


Quando acordei eu não queira conversar e tinha decidido que não escreveria. Mas então eu chorei, comi o meu almoço, conversei com meu namorado, vim para o quarto e comecei a escrever. 



Este post foi escrito com base no tema "o ciclo", do Blogagem coletiva proposto pelo Projeto Escrita Criativa.










Comentários

  1. Tudo é processo, até o entendimento das coisas ruins que acontecem com a gente passam por esse ciclo. Agradeço por você compartilhar esses sentimentos e fatos tão pessoais e dolorosos. Eu concordo com o seu namorado que é importante dizer o que sente. É bom pra você e é bom pra quem ouve. Admiro sua coragem e força e se precisar de mais, tem um pouquinho da minha coragem e força pra você usar também, de verdade! É só chamar!

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    1. Tudo é processo e quando nos damos conta disso as coisas ficam mais leves. Obrigada pelo apoio, é recíproco.

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